[1 e 2 jan 2006] Copiapó

Agora começou a viagem de verdade. Bordeamos o Oceano Pacífico (que de pacífico não tem nada) com seus costões monumentais e seguimos para Copiapó, a capital da região do Atacama, no norte do Chile. O Atacama é um grande deserto que ocupa todo o norte do Chile, do litoral até a Cordilheira dos Andes. No lado da Argentina é deserto também, mas não tem um nome especial.

A estrada era linda, e mudou completamente quando entramos no deserto. Já começavam a aparecer as cores nas montanhas, que são plenas de minérios variados. Copiapó, nosso destino, fica no meio do nada, encravado em um vale. Da estrada dá para ver as casas e ruas espremidas entre montanhas fantásticas. Passamos um tempo lá nos preparando para o que depois se revelou como o dia mais longo (e fantástico) da minha vida.

2005 • Paso San Francisco


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Paso San Francisco, Argentina • janeiro 2006

Essa viagem foi feita em 4 motos: 3 casais e mais um amigo (Conrado e eu; Verani e Nelci; Cacá e Nina; Jorge). Os pilotos saíram de Florianópolis no dia de Natal e encontraram a nós, as garupas, no aeroporto de Santiago do Chile, no dia 30 de dezembro de 2005.

O grande desafio dessa viagem foi cruzar o Paso San Francisco, um dos menos freqüentados por causa dos seus poucos recursos: entre os dois postos de gasolina mais próximos há nada menos que 470 km. E, excetuando-se as aduanas chilena e argentina, também não há mais nada — exceto, é claro, da paisagem deslumbrante.


Pois é. A idéia era cruzar os Andes novamente e terminar a viagem em San Pedro de Atacama. Por diversos motivos, incluindo o desgaste de uma embreagem por causa das descidas e subidas muito íngremes, decidimos voltar. Já tínhamos visto o suficiente, as coisas lindas já estavam virando rotina e a gente quase não conseguia mais se deslumbrar, o que é extremamente grave para viajantes. O ano que vem tem mais. Não sei para onde vamos. Mas se você tiver que fazer só uma viagem na vida, eu recomendo essa.


O começo já foi deslumbrante, pois vimos o sol nascer entre as brumas das montanhas e desfiladeiros gigantes. A qualquer momento parecia que iríamos ver o Papa-Léguas fugindo do Coiote (bip-bip!). Mas a estrada era muito ruim, fazia muito frio, e tivemos que parar algumas vezes para reabastecer as motos. Houve 3 quedas, e teve que parar todo mundo para levantar as motos caídas (pesadíssimas, principalmente se lembrar que a gente estava a mais de 4 mil metros e as cabeças já estavam explodindo com a falta de oxigênio). Tudo tinha que ser feito bem devagar e os reflexos estavam bem lentos. Ainda bem que anjos de guarda adoram passear e estavam lá a postos, de maneira que ninguém se machucou e nenhuma moto foi avariada seriamente. Gastamos muito tempo nas aduanas argentina e chilena com o festival de papéis em três vias e vários carimbos, numa operação inexplicavelmente complicada. Os corpos estavam cansados com tantos solavancos e falta de oxigênio, alguns vomitaram, quase todo mundo passou mal (eu só senti um pouco de fraqueza quando me empolguei e saí correndo, é difícil se controlar num lugar assim).

Mas tanto desconforto valeu a pena. Agora vem uma tentativa de descrição do que a gente viu. Se bem que nada do que eu possa contar ou fotografar vai conseguir transmitir a mais vaga idéia do que foi a experiência.

As montanhas eram altas e com formas impensáveis. Como bem descreveu o Cacá, uma verdadeira orgia geológica. O relevo era pintado de cores pastéis como se estivessem todos os tons misturados em uma paleta, e iam do lilás ao ocre, do verde água ao rosa (as máquinas fotográficas não conseguiram captar tantas nuances). A sorte é que estávamos todos de capacete, porque foi difícil de segurar o queixo. A cada curva uma surpresa. Famílias inteiras de vicunhas (parentes do camelo, mas um pouco menores e sem corcunda, com um pêlo amarelado) eram vistas cruzando os caminhos, assim como cabras, cavalos e burros. Era tudo tão surreal e árido que a impressão é que a gente estava na lua, numa versão technicolor, como naqueles filmes em preto-e-branco coloridos artificialmente. Uma verdadeira aberração que culminou na aduana chilena, um galpão instalado às margens de um salar gigante (Salar Macuringa). Os salares são formações geológicas que acontecem porque um dia a Cordilheira dos Andes já foi coberta pelo oceano. Com o tempo, a água secou e só ficou o sal. É um lago de sal, branquinho de doer os olhos. Uma visão!


Continuamos nos encantando até que nossos corpinhos exaustos (já estávamos viajando havia 8 horas) chegaram à inacreditável Laguna Verde, no topo da montanha mais alta da travessia. Gente, eu nunca vou conseguir descrever o que é sair de uma curva e ter a Laguna Verde diante dos olhos! Qualquer esmeralda ficaria com vergonha diante daquilo! Um ciano completamente puro, as máquinas fotográficas não lhe fizeram justiça. A Laguna, daqui a alguns milhares de anos vai virar um salar. A água está secando e essa cor fantástica é por causa da altíssima concentração de sal e outros minérios. A gente molha a mão na água e, quando ela seca, transforma-se numa luva branca de sal. Um pouco mais adiante flagramos uma convenção de flamingos cor-de-rosa em seu passeio vespertino. Na aduana havíamos cruzado com um casal de malucos belgas que estavam em duas motos e nos contaram que haviam acampado na Laguna Verde e que tinham pegado 10 graus negativos durante a noite. Na hora a gente duvidou seriamente do equilíbrio mental deles, mas agora dá para entender aqueles sorrisos estranhos. Ver o sol nascer aqui deve ser o equivalente a um êxtase místico.


E você acha que acabou? Pois é, a gente já estava bem cansado e satisfeito, e só querendo um banho e uma cama quentinha. Mas que nada…

Foi só começar a descer e, na primeira curva, já na parte asfaltada, nos deparamos com um mundo amarelo-ouro. Sério! As montanhas todas cobertas com touceiras de matinhos completamente amarelos. A gente só via os capacetes se batendo, ninguém queria acreditar. Mas o que é isso, será que as belezas não vão acabar? A gente não agüentava mais, já estávamos há mais de 12 horas viajando! Os olhos simplesmente não conseguiam acreditar no que viam! Imagine um mundo inteirinho amarelo, com vulcões coloridos ao fundo. Não dá! Parecia realidade virtual. Quando descemos a estrada e quase fomos atropelados por uma família inteira de vicunhas também amarelas, foi demais para mim. Desatei a chorar, comovida. Não imaginava que pudesse haver um lugar assim no mundo. Nem o mais delirante dos diretores de arte poderia criar uma coisa dessas.


Bom, pensamos, agora deu, né? A gente não suportava mais se deslumbrar, já estávamos fracos demais. Mas o Criador não teve piedade. Ele estava tendo um acesso de exibicionismo e tivemos que assitir. Ele estava mesmo decidido a causar impressão…

Passamos então por um trecho que parecia um mostruário de quantos tons de verde podem haver no mundo. As montanhas eram cobertas com o que parecia musgo colorido, mas era minério. Inacreditável!!!

Depois do festival de verdes, entramos num despenhadeiro completamente vermelho intenso! Não dava para acreditar, a gente já estava começando a ficar revoltado com esse abuso. Foram uns 10 km com a exibição de vermelhos variados e alguns verdes complementares. Nessa hora acabaram-se as memórias das máquinas fotográficas, os adjetivos e toda a sanidade mental que restou. Então pensamos: agora BASTA!

Mas que nada! Ainda tinha a sessão de ocres e magentas, pedrinhas que pareciam vitrais, de tão coloridas, campinhos verdejantes com cavalos selvagens que circundavam riozinhos de degelo.


Quando todos estavam se arrastando e começando a se mexer perigosamente demais em cima das motos, juro que me deparei com o pensei ser uma alucinação. A gente saiu de um curva e deu de cara com a coisa mais sensacional que eu já vi na minha vida! Na verdade, esse espetáculo todo era só uma preparação para o que viria a seguir.

Como um cenário de teatro com cores muito artificiais, bem de frente para a estrada, descortinava-se, ao longe, uma cordilheira de montanhas lilases!!!! Gente, eram vários tons de lilás e as montanhas altíssimas (um pedaço perdido da Cordilheira) tinham partes extremamente detalhadas e esculpidas e outras lisas, como uma avalanche de neve se derramando. Sabe aquelas cidades-fantasma que aparecem em filmes, bem ao longe, na bruma, em tons lilás, cheias de detalhes? Pois era algo parecido. E para ficar mais espetacular, no sopé disso tudo descansava uma faixa verde de árvores de um tom indecente para a ocasião que era nada menos que Fiambalá, nossa cidade destino. Depois de 14 horas de viagem, era como ver um oásis numa miragem. Pena que a minha máquina não conseguiu traduzir nem as primeiras letras dessa maravilha.


No jantar, na única pousada do local (a Hosteria Municipal — sim, uma hospedagem do governo), ninguém conseguia parar de falar. Estavam todos hipnotizados e em transe ainda. Bom, não sei se os cérebros ainda não tinham voltado ao normal ou se estávamos cansados demais, mas a única teoria que encontramos capaz de explicar esse fenômeno de exibição descontrolada da natureza era que tínhamos todos sido abduzidos no caminho e levados para algum outro planeta para passar o dia. Isso explicaria a sensação desconfortável de que os nossos miolos estavam soltos e a cabeça não parava de doer. Decerto fizeram experiências conosco. Mas valeu a pena, nem me importo se colocaram algum chip.


[8 jan 2005] A caminho de Salta

Depois de 2 repousantes dias naquele hotel legal em Quilmes, continuamos a jornada, dessa vez rumo a Salta. Passamos por paisagens encantadoras no caminho, e mais lhamas. Salta é uma cidade muito antiga, charmosa e maravilhosa, a capital da província. À noite pode-se jantar divinamente ao som de música ao vivo da melhor qualidade. Foi lá que provei uma das melhores trutas que já comi na vida.


[30 dez 2005] Santiago do Chile

Estamos em 4 motos: 3 casais e mais um amigo. Os pilotos partiram de Floripa no dia de Natal e hoje, dia 30, nós, as garupas, chegamos de avião a Santiago do Chile. O almoço no Mercado foi festivo e delicioso.


 
[31 dez 2005] La Serena

Seguimos 600 km para o Balneário de La Serena, a segunda cidade mais antiga do Chile, na beirada do oceano Pacífico. No século XVIII ela foi várias vezes saqueada e destruída por piratas e corsários, incluindo o famoso Francis Drake, que fez muito estrago por lá. Tudo isso porque La Serena fica num lugar estratégico do continente e reuniu por muito tempo o comércio e a distribuição de minérios, principalmente a prata.

Hoje o porto continua de vento em popa, mas com outros metais. Em 1950, quando o Chile era governado por um presidente nascido na cidade, foi instituído um padrão arquitetônico que, se por um lado acabou com os arroubos criativos locais, fez o centro histórico ficar uma graça. Por causa dos corsários, o centro administrativo e comercial (com praça, igreja e bancos) foi construído a mais de 2 km da costa, que tem uma praia linda e geladíssima. Passamos um reveillon “meia boca” num restaurante chinês, pois no dia seguinte tinha mais estrada.


[3 jan 2006] Paso San Francisco

O Paso San Francisco (Pasos são estradas que cruzam a Cordilheira) é um dos menos freqüentados por causa do grau de dificuldade para atravessá-lo, mesmo de carro. São quase 500 km entre Copiapó, onde tem o último posto de gasolina, e Fiambalá, na Argentina, onde tem o próximo posto. As motos precisam levar combustível extra, pois exceto as aduanas não há mais nada (nem uma sombra, nem uma árvore, nem uma borracharia) entre os dois pontos. Assim, tivemos que levar comida também, e muita água. Os primeiros 300 km não são asfaltados e a estrada só abre nos meses de janeiro e fevereiro, quando a neve derrete. Saímos às 6h30 da manhã, com o dia ainda escuro, e às 10 horas já estávamos a 4.200 m de altitude. Ficamos nesse platô até às 6 da tarde, quando começamos descer (o ponto mais alto é 4.720 m).


[6 jan 2005] Ruínas de Quilmes

Subimos e descemos montanhas (2 a 3 mil metros de altitude) em uma estrada tão ruim que, em determinado ponto, as garupas tiveram que descer das motos mais pesadas para que elas não derrapassem. Ainda bem que a gente conseguiu uma carona com o pessoal que fazia obras no local...

O próximo destino era um lugar chamado Ruínas de Quilmes (sim, é o mesmo nome da famosa cervejaria argentina). O nome da cerveja vem daí mesmo, mas a história é bem triste. Os Quilmes eram um povo bastante desenvolvido, tanto politicamente como tecnologicamente (cerâmicas, metais, irrigação, etc). As estimativas são de que eles datam do ano 800 DC. Por volta do século XV foram invadidos pelos Incas, e, logo em seguida, entraram em cena os espanhóis querendo convertê-los ao cristianismo.

Os Quilmes acreditavam no deus Sol e na deusa Terra, entre outros, e não se submeteram. A guerra foi sofrida e durou anos. Por fim, os espanhóis cristãos envenenaram a água da tribo, capturando-os. Cerca de 10.000 pessoas foram levadas até Buenos Aires a pé (são mais de 1.500 km), mas apenas uns 300 Quilmes chegaram ao destino. Revoltados com os maus tratos e não querendo abrir mão de sua fé e sua cultura por um "deus" que só lhes fazia sofrer e jogava sujo, fizeram um pacto de não mais se reproduzir. Dizem que as mulheres grávidas se jogavam de um penhasco para cumprir a palavra. Muito triste. Ainda mais quando a gente acha presépios (sim, PRESÉPIOS!!!) imitando a arte Quilme nas lojinhas de souvenirs.

Bem, ficamos hospedados no belíssimo hotel instalado no terreno das ruínas. Totalmente integrado ao ambiente, ele foi concebido e construído pelo artista plástico nativo Hector Cruz. Há uma floresta de cactos gigantes que circunda tudo e uma lhama funcionária do hotel que vem tomar café da manhã com os hóspedes em troca de biscoitinhos. Ela é educadíssima e pega o biscoito da sua mão com a maior delicadeza. Praticamente um cachorro disfarçado de lhama.


[5 jan 2005] Andalgalá

Das termas vimos várias estrelas cadentes, mas eu não tinha mais nem o que desejar. Quem pode desejar alguma coisa estando numa piscina de pedra com água quentinha e tomando um vinho local delicioso?

Já recuperados, partimos para Andalgalá, que fica à beira de uma linda montanha nevada. Os últimos 150 km são de estrada (boa) rodeada por olivais (Andalgalá é a capital argentina do azeite de oliva). Tudo muito seco e lindo.

Mas as motos eram muito grandes e as cidades do caminho, muito pequenas. O resultado disso é que viramos assunto na região. Fomos entrevistados pela TV e o rádio de Fiambalá e, ao pararmos em Tinogasta para abastecer, vimo-nos cercados novamente pela imprensa local. Vida de celebridade...


[4 jan 2005] Fiambalá

Hoje estamos em Fiambalá, depois de termos dormido um reparador sono em lençóis de oncinha de mau gosto nada duvidoso que devem ter sido comprados em alguma licitação da prefeitura. A cidade tem 5.000 habitantes espalhados em uma rua de 14 km e 3 cibercafés! À noite vamos às termas, que têm 14 piscinas naturais feitas de pedras com temperauras que vão dos 28 aos 51 graus centígrados, para apreciar o céu estrelado dessa parte do mundo.

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